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Corre este ano o bicentenário de nascimento de Camilo Castelo Branco. Encontrei um delicioso texto publicado exctamente no centenário do seu nascimento, num periódico intiltulado LIVROS - Mensário da Vida Literária Portuguesa, nº1 (Março de 1925), intitulado Camilo Bibliófilo e do qual transcrevemos um fragmento:

 

" ... Amava os livros, gosto despertado nos anos felises da mocidade, passados no presbitério da transmontana povoaçãosinha de Vilarinho de Samardan. Por carência de melhores alfarrabios, padre António de Azevedo, seu
professor de latim, emprestava-lhe os Annaes da Propagação da Fé e o Teatro de los Dioses, as Viagens de Cyro, os Lusiadas e as Peregrinaçoens de Fernão Mendes Pinto. Era «uma mistura de inventados martírios católicos, com as aventuras desenvoltas dos deuses da fabula, e os monologos de uma novela do seculo XVII com incolores peripécias».Tambêm nessa região fragosa, o Corgo a sussurrar entre escarpas, «alvoreceu o arrebol do entendi-mento, e a ancia de trasladar ao
papel o dilúculo dessa alvorada ». Com o anceio de escrever, o gosto pela leitura tornou-se necessidade.


Podemos antever os serões do escritor em S. Miguel de Seide, quando a neve encrosta na vidraça, e Camilo fuma consecutivamente, para a nicotina o excitar. Muito chegado à luz, do tradicional can-dieiro de latão, lê, lê muito e vai comentando à margem os livros. Algumas notas constituem pequeninos fragmentos de criticas literá-rias. Terminada a leitura começa a escrita: as cótas servem de roteiro ao pensamento e o artigo aparece. Deviam ser assim alguns dos serões em Seide, como se deduz das notas marginais aos estudos de Manuel Bernardes Branco sobre Portugal e os Estrangeiros, depois capitulo dos Narcoticos.

Rodeiam o escritor, livros estimados: — amigos discrétos do seu viver íntimo. Viver enleado em abrólhos. Tem um filho louco. É roubado pelo proprietario da Gazeta Litteraria do Porto. Vieira de Castro. seu querido amigo, mata a esposa. Escasseiam a Camilo os recursos monetários. Está numa inquiétação, constante; numa insatisfação permanente. Intelectualmente não pode produzir mais. Medita naquela situação aflitiva, e só os livros, amigos silenciosos, que o rodeiam, o podem salvar. Vai ser leiloada a livraria.

Antonio Moldes, imprime-lhe o catalogo. Gente letrada de pouquis-simos recursos, e comerciantes portuenses semi-analfabetos correm à rua de Santo Ildefonso a disputar aquêles livros. Para uns são dum eminente escritor e mestre, para outros são os livrecos do famoso conquistador.

Não foram grandes os proventos do leilão, porque passado tempo, mais livros da livraria de Seide passaram para quem mais dinheiro por eles deu.
«
Vou mandar para Braga um carro de livros para vender. Envio a V. Ex.a a lista delles. O que ahi ha bom tem V. Ex.a; o que não presta, decerto, o não quer; pelo conseguinte, não ha que lhe possa servir. Entretanto, como V. Ex, a se en-tretem, a ver estas cousas mando-lhe o catalogo. Recommendo-lhe, todavia, os nºs 283 até 289. Disto é que està virgem a livraria de V. Ex.ª. Como eu ajuntei 642 sermoens manuscriptos, e muitos com mais de cem annos! Que mina. Não se ria V. Ex.a das notas indicativas com que eu assopro o valor dos livros. Cá em Braga é preciso aquilo•.

Camilo procurava emancipar-se dos editores que haviam enriquecido com desenas de volumes da sua autoria, emquanto ele sentia a « pobresa ao cabo de vinte anos de lúta ». Pensa no futuro da sua prole e resolve:
«
Meditando, porem, no futuro deles, (os filhos) figura-se-me q'ainda poderei deixar-lhes a propriedade dis livros q'a Providencia me permita escrever, se tu os poder publicar com recursos proprios, não os sacrificando aos avarentos lucros dos editores. Olhando à volta de mim, em busca de amigos que se gloriassem de me serem amparo e incentivo. as modestas ambiçoens, que o mundo considera opulentos de glorias, não os vi ».

Deseja emprestado um conto e luzentos mil reis, mas a pretençao foi indeferida e o plano fracassou. Sem aquêle « dinheiro salvador», torturado pela doença, deprimida a energia pelos insucessos e atribulações moraes, a sua existência era
da mais titanica lúta. Refugia-se no gabinete, concentra-se na leitura, e devora caixas e caixas de
« Flor de la Reyna». Quando os seus nervos acalmados pela leitura amena, a nicotina lá está provocando a excitabilidade. Sente-se fatigado e para descansar, tenta viagens, adquire mais livros, completa colecções bibliacas. « De dinheiro nem sombras ». Carece dele e então rende-se à agiotagem. ... "